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Camacuan, a estória completa


Como era habitual, a calma do Lúcio me deixava nervoso, faltava menos de um mês para a nossa data prevista de partida e ele, na santa calma, continuava arrumando as coisas numa velocidade de parada dos 3 metros, minha grande preocupação, era que as 4 caixas, lotadas de equipamentos e pesando no total quase 400 KG não chegassem no seu destino, Recife, a tempo dos mergulhos.
A corveta era um misto de lenda e realidade, muitos diziam ter mergulhado lá, muitos diziam conhecer seu interior, mas toda vez que eu procurava detalhes, as aberrações me faziam crer em duas coisas básicas no mergulho em naufrágios, mentiras e o poder do nitrogênio nas profundidades, as versões iam desde “todas as portas fechadas” a “todas as portas abertas”, passando por “nenhuma porta a vista” e “nem sei o que é isso”.
Com alguns dias de atraso, o caminhão da transportadora partiu, levando nosso “travel kit” para seu destino, um compressor de alta, tres duplas, cinco S-40 para stages, asas, back plates, reguladores, analisadores de O2 e de hélio, transferidores e mais uma infinidade de equipamentos, pecinhas, ferramentas e gadgets que só quem conhece o Lúcio acredita ser possível alguém carregar.
Com uma preocupação a menos, contava os dias para o aeroporto, como a expectativa faz o tempo passar bem mais devagar, demorou muito, mas finalmente pousamos em Recife.
Nossa primeira preocupação foi confirmar os equipamentos, para variar, estavam atrasados e não haviam chegado, o hélio havia sido entregue, quantidade suficiente para 15 dias de mergulhos, oxigênio também não era problema, haviamos pedido com 30% de sobra para o caso de acabarmos “esticando” as férias.
A primeira grande missão foi montar a “base”, nossa logística era péssima, pois o gás havia sido descarregado em Olinda, o compressor em Recife e o ponto de partida era uma Marina a uns 8 km de onde estava o compressor, nunca, um carro popular carregou tantos cilindros, em tão poucos dias, a maratona começava pela manhã, carregar o barco, depois do mergulho, as duplas e stages eram descarregadas, de lá seguia-mos a Olinda, cerca de 30 Km, fazer os pre mixes, de Olinda para a academia onde estavam os compressores, completar com ar, dali de volta ao hotel a na manhã seguinte carregar o barco novamente, ufa ! uns 50 km por dia para fazer misturas, mas o mergulho sempre vale a pena.
Base montada, resolvemos fazer um briefing inicial com os mergulhadores que supostamente já haviam mergulhado na corveta, na base gentilmente cedida pelo Fernando Kaltenbach reunimos umas 10 pessoas, todas elas, antes da reunião, profundas conhecedoras da Camacuan.
O Lúcio começou a reunião fazendo as apresentações, depois de algum papo houve consenso quanto a posição, a Camacuan estaria adernada a boreste, era um bom começo, rapidamente rabisquei no quadro o que seria um navio adernado e a pergunta que mais nos interessava era : “Quais os possíveis pontos de penetração ?”

Nesse momento a sala emudeceu, lembrando a reunião do GA, Gagos Anonimos, ninguém sabia nos contar sobre pontos de penetração, sobre detalhes do casario, do interior, situação das portas e das escotilhas e outros detalhes, fundamentais para o planejamento da penetração.

Olhei meu dupla com cara de desânimo, mas como o mergulho só começaria em dois dias, aproveitamos o churrasco e a cerveja para relaxar, o mergulho seria por nós mesmos, no começo desconfiávamos, mas agora tinhamos certeza, curtimos a hospitalidade Pernambucana e na manhã seguinte fizemos o primeiro planejamento de fundo.
Iríamos usar Trimix 18/30, padrão do G.P.S. no Campos, como os dois encontram-se em profundidades semelhantes, utilizaríamos as mesmas contingências, o alvo eram 30 minutos de fundo, limite máximo em 40 minutos, usaríamos EAN 40 e Oxigênio e deixaríamos uma stage com EAN 60 com o safety diver. Rodamos planejamentos, contingências, planejamos emergências mas o que mais nos preocupava é que não havia câmara hiperbárica em Recife, assim, optamos por levar algumas S-80 a bordo com oxigênio e outras misturas EAN , just in case....
Na manhã seguinte começamos os preparativos finais, os trimix já estavam prontos, EAN para deco também, foi quando começaram as surpresas, pois tentando limpar algumas S-80 para O2, após tentar remover umas 5 torneiras que estavam “soldadas”, o Lúcio acabou desistindo, assim só haveria o O2 que levamos de reserva, além das stages que o pessoal de Recife utilizaria.
Na manhã da partida a ansiedade era gigante, nos surpreendeu, quando chegamos ao ponto de partida e encontramos vários outros mergulhadores de Recife que nos acompanhariam, quando comecei a olhar equipamentos, um frio me correu a espinha, de stages amarradas com cabo a duplas isoladas de S-80 com dois reguladores recreacionais havia de tudo ali ao meu redor, um show room de perigos, chamei meu dupla para uma reunião de emergência, pois a situação não agradava nenhum dos dois, como éramos convidados, a opreção não era nossa responsabilidade, concluimos que não deveríamos interferir, eramos uma dupla e ponto, cada um que administrasse seus riscos.
Durante as quase 5 horas de navegação, ainda falei muito sobre os riscos de duplas isoladas, de narcose pois muitos estava com ar como mistura de fundo (brrrrrrrr !) e fariam descompressão com ar (brrrrrrrr ! 2), o máximo que consegui foi que deduzissem o tempo de fundo ao mínimo, se alguém tivesse problemas ali, as chances de erro eram monstruosas.
Os procedimentos para fundeio ali são os mais diversos possíveis, sendo o mais comum a utilização do “mergulhador garatéia” que é lançado com o cabo quando o barco passa sobre o naufrágio e se encarrega da amarra o cabo.
Para ser sincero eu nunca entendi porque ninguém deixou um cabo ali, as hustificativas habituais de roubo e desaparecimento poderiam ser facilmente contornadas com um cabo a 9 ou 10 metros de profundidade, muito mais fácil que amarrar a 56...... considerações de lado, lembrei que era convidado e tratei de calar meus pensamentos.
Como o homem garatéia em tres tentativas não conseguiu amarrar o cabo, e aquelas subidas e descidas dele me faziam imaginar o sangue em seu sistema circulatório aquela altura já teria mais bolhas que o óleo na frigideira da barraca do pastel, decidimos cair a deriva, deixando a embarcação também a deriva. Nesse momento lembrei que muitos dos nosso procedimentos de mergulho, comuns em Ilhabela, ali não fariam muito sentido, pois a operação do G.P.S. além do botão 'goto' era um mistério, mapear a deriva e ir em direção a um mergulhador perdido seria complicado.
Como ansiedade e cautela nunca andam juntas, no tres caimos na água e tratamos de pedalar para o fundo.
Chão branco, de areia, aos 58 metros, estava frustrado por não ter caído bem sobre a corveta, melhor ainda quando olhei ao redor e não vi nada, além da areia desaparecendo no limite da visão, seguimos correnteza acima, buscando compensar nossa deriva e em 5 minutos avistamos um vulto no além, esse além estava a mais de 50 metros e era possível ver a sombra.
A correnteza era considerável, mas a visibilidade nos empurrava, queríamos chegar logo mais perto para poder aprecia-la, de longe parecia bem pequena, comparada ao Asturias, Elihu ou Campos era um “barquinho”, mas aquela visibilidade era um sonho, entre as pedaladas eufóricas não notei que meu ritmo respiratório lembrava o frevo que tínhamos ouvido quando passamos por Olinda, tratei de diminuir a energia nas pernas e me livrar do CO2 em excesso. Ao notar que estava com calor, numa roupa que habitualmente uso para caça, que audno nova tinha 2,5 mm me assustei com a temperatura, e conclui que Recife é um ótimo lugar para aquele tipo de mergulho.
Chegamos a corveta e tratamos de sobrevoa-la, como não haviam croquis nem ao menos um outline externo com algum detalhe, tratamos de coleta-los. De cara, a informação que tinhamos, de apenas um canhão tornou-se a prova viva dos efeitos da narcose, encontramos uma segunda peça, de uns 70 ou 80 mm jogada na areia, ainda no seu reparo original, que ficava montado a ré, e mais duas armas leves, provavelmente 20mm anti aéreas de cano simples, pois achei a caixa de culatra muito grande para uma .50.
Seguimos em direção a proa o passadiço lateral nos revelava todas as portas abertas, mas com muita “sujeira” no interior, pedaços de estruturas atrapalhando o caminho, continuamos em direção cabine de comando, ou “battle bridge” nos navios de guerra, no final do passadiço de bombordo estava a porta que permitia a entrada.
Quando coloquei a cabeça para o lado de dentro, as torções ao longo de todo casario confirmaram minhas suspeitas, não existia piso no battle bridge, as chapas do lado superior (bombordo) estão amassada para cima (ou para fora) e no través de boreste (lado de baixo) não existe nada além de um imenso buraco.
Sinalizei para o Lúcio que entraria no visual, pois não acreditava na possibilidade de silt pesado, ele me sinalizou que exploraria por baixo, combinamos 5 minutos de penetração e rendez vous no mesmo ponto.
Segui para o fundo, examinando as estremidades do buraco que poderia ter sido causado pela corrosão, mas as chapas dobradas para fora, na extremidade inferior, onde elas ainda tem mais de 3 mm de espessura, sinalizavam que muita energia havia se concentrado ali, e essa energia normalmente procura locais para escapar.
Uma escotilha ainda presa a parede, a ré, tinha seu vidro trincado em formato radial, como se alguém tivesse feito pressão em seu centro, até que o vidro trincasse formando uma estrela, era a única fechada que pude encontrar, fora dali, todas estavam abertas, assim como as portas.
Não fazia muito sentido, para um navio em meio a uma tempestade, ter portas e escotilhas abertas, o fato dele estar com a quilha voltada para terra, não invalidaria a teoria de que afundou após uma vaga muito grande, o movimento da embarcação, a disposição e estado da carga, situação dos motores e do leme e outros fatores, fazem com que ele possa adernar por qualquer um dos bordos, independente do lado onde veio a onda, assim, algumas teorias, de que se fosse realmente uma onda ela teria adernado com o quilha virada para o mar, eu sempre considerei como folclore de quem desconhece principios básicos de navegação e de estabilidade de embarcações, mas confesso que esses novos dados me intrigavam muito.
Nesse momento Lúcio se juntava a mim, entrando pelo través de boreste do battle bridge, onde há um excelente ponto de penetração.
Decidimos olhar a popa e saímos dali, dessa vez pelo passadiço de boreste, como se estivesse-mos sob a corveta, seguimos a ré, decidi olhar o “debris field” ou campo de destroços que sempre se forma ao redor das embarcações, alguém tinha me falado sobre tambores alinhados, quando de repente o frio voltou a me gelar a espinha.
Cargas de profundidade, com os lançadores “parafusados” nelas, parecendo grandes martelos jogados no mar, sabendo que componentes ferrosos e detonadores não são grandes amigos e mesmo considerando o adiantado estado de decomposição e oxidação achei prudente respeitar a capacidade de sobrevivência do estevinato de mercúrio e manter uma distância segura da peças.
Refeito do susto fui procurar o Lucio que havia deixado a carretilha para o lado de fora e já entrava num novo ponto de penetração, dessa vez, o local que batizamos de “cozinha“, pale presença de pratos, garrafas, pias, talheres e taças de cristal, quase todos quebrados pela bagunça que acontece quando as coisas perdem seu horizonte natural e vão caindo e se depositando onde um dia foi uma parede.
Sinalizei com o dedão para cima, 29 minutos e era hora de subir, descomprimimos a deriva, e assim eu terminamos a descompressão o barco veio nos resgatar...


Marcelo "Moorea" Polato

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